Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas, Doutor em Educação pela FAE/UFMG; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas, em Minas Gerais.
PAPA
FRANCISCO, OUTRO FRANCISCO DE ASSIS, PEREGRINO DE ESPERANÇA. Por frei Gilvander Moreira[1]
Na madrugada do dia 21 de abril de 2025,
no ônibus, voltando de missão no Acampamento Vida Nova, em Jordânia, e da
Ocupação Irmã Dorothy, em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, ao
passar pela cidade de João Monlevade, voltando para Belo Horizonte, eu fiquei
muito comovido ao saber da travessia do nosso querido irmão Papa Francisco[2]
para a vida plena. Ele se transvivenciou, se encantou e nos deixou um
extraordinário legado de ética, de humanismo, de profecia, de espiritualidade
libertadora, de luta pelos direitos humanos, pela ecologia integral...
Francisco pediu um velório e
sepultamento simples, sem pompas, e que fosse escrito no seu túmulo apenas uma
palavra: “Franciscus”. Homem imprescindível, que lutou até o fim pelo que é justo.
No seu último dia de vida no nosso meio, no Domingo de Páscoa, ainda teve força
para nos abençoar, nos desejar feliz Páscoa e deixar sua última mensagem à
Igreja e ao mundo, em que faz apelo “a
todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à
lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os
necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o
desenvolvimento” e lembrou que “estas
são as armas da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar
morte!”
Papa Francisco foi outro Francisco de
Assis que guiou a Igreja Católica com humildade, sabedoria, sensatez e
profecia. O papa João XXIII (1881-1963)
tentou reformar a Igreja convocando e iniciando o Concílio Vaticano II.
Francisco lançou sementes no concreto duro da instituição Igreja ao convocar e
realizar vários Sínodos, mostrando que é por meio da caminhada conjunta, se
animando comunitariamente, incluindo todos e todas, dialogando, em missão,
sendo “igreja em saída”, que a Igreja e as pessoas que se dizem católicas vão
conseguir ser coerentes com o ensinamento e a práxis de Jesus Cristo.
Francisco
fez vários Encontros com Movimentos Sociais Populares de todo o mundo. Defendeu
a utopia de: “nenhum/a CAMPONÊS/A sem
terra, nenhuma PESSOA/FAMÍLIA sem
casa, nenhum/a TRABALHADOR/A sem
direitos, não há DEMOCRACIA com
fome, nem DESENVOLVIMENTO com
pobreza, nem JUSTIÇA na
desigualdade...”
Papa Francisco, o primeiro pontífice
latino-americano e o primeiro jesuíta a liderar a Igreja Católica, um dos
maiores e melhores profetas de todos os tempos, lutou pela construção de uma
igreja de todos, para todos/as e todes. Foi um papa ecumênico que cultivou o
diálogo inter-religioso. Ele pregava que a espiritualidade nos une na
construção de uma sociabilidade justa e solidária. Francisco, papa da Ecologia
Integral, que denunciou a economia capitalista, a idolatria do mercado, como “economia que mata”. Em uma única Casa
Comum, “somos todos irmãos e irmãs
(“Fratelli tutti”), enfatizou Francisco em livro, em Encíclica etc. Como
peregrino de esperança e semeador de uma sociedade justa e solidária, e de uma
igreja que não reproduza o regime da Cristandade, aliada aos poderes político e
econômico, mas uma igreja dos pobres que acolhe misericordiosamente todos/as
sem discriminação e que promova a igualdade de direitos, que repudia a
intolerância religiosa, o fundamentalismo e o moralismo anticristão, o papa
Francisco condenou todas as guerras, o genocídio do Povo Palestino e clamava
diariamente pela paz como fruto da justiça. Denunciando o genocídio que o
Estado de Israel segue fazendo sobre o Povo Palestino, Francisco disse: “O que Israel está fazendo é crueldade.”
Como Jesus Cristo e Francisco de Assis, com
sorriso nos olhos, o papa Francisco sempre acolheu de braços abertos todas as
pessoas, especialmente quem sofre algum tipo de discriminação e injustiça: os
indígenas, os camponeses, os negros, as crianças, as mulheres, as pessoas
LGBTQIA+, os imigrantes, os presos, os refugiados, as pessoas em situação de
rua... Francisco sabia que em uma sociedade brutalmente desigual quem se diz
neutro e fica “em cima do muro” se torna cúmplice das opressões e injustiças.
Francisco sempre escolheu o lado dos humildes, dos empobrecidos/as e
injustiçados/as. Francisco teve a coragem de pedir perdão pelos crimes do
colonialismo e de reconhecer a sabedoria e os direitos dos Povos Originários/Indígenas.
Às juventudes, no Rio de Janeiro, em
2013, Francisco bradou: “Sejam como Jesus
Cristo: REVOLUCIONÁRIOS! Não tenham medo de ir contra a corrente”.
Papa Francisco, durante seus 12 anos de
pontificado, promoveu importantes reformas na Cúria Romana, combateu com
firmeza os abusos dentro da Igreja e fortaleceu a presença de mulheres no
Vaticano, incluindo-as em funções de destaque, abriu recentemente um novo
processo para reformas na Igreja Católica, inserindo a possibilidade de
mulheres servirem como diaconisas e uma melhor inclusão de pessoas LGBTQUIA+ na
Igreja. Francisco assumiu posicionamento firme contra a pena de morte,
alterou no Novo Catecismo, à luz do Evangelho, a doutrina sobre a pena de morte
e prescreveu a sua abolição em todo o mundo, afirmando que “a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade
e dignidade da pessoa, e se compromete, com determinação, em prol da sua
abolição no mundo inteiro”. Coerente com o Evangelho de Jesus de Nazaré
criticou reiteradas vezes o consumismo desenfreado e as desigualdades sociais,
provocados pelo sistema capitalista, tornando-se uma voz respeitada
mundialmente.
Aos
opressores e exploradores, falsos cristãos, idólatras de extrema-direita e
fascistas que o caluniam chamando-o de “comunista” e com outras injúrias, o
nosso irmão Papa Francisco diz: "Pai, perdoai-lhes, pois uns sabem o que
fazem, outros estão cegados". Inspirando-se em Jesus que perguntou a um
dos seguranças do sistema: “Por que me bates?” (Jo 18,23), Francisco respondeu
à acusação de “ser comunista” em uma entrevista ao canal C5N, da TV argentina,
em 2023. Disse ele: “Minha carta de
identidade é o Evangelho de Mateus 25,31-46. Leia Mateus 25 e veja se quem
escreveu era comunista”.
As realidades mais profundas, muitas
vezes, só conseguimos enxergar de olhos fechados e após perdermos a presença
física da pessoa amada. O papa Francisco foi um gigante na vivência do
Evangelho de Jesus Cristo e será ainda maior quando as sementes do seu
ensinamento e do seu testemunho se enraizarem em milhões de pessoas pelo mundo
afora. Como semente que brota nas rachaduras do concreto, a mensagem do papa
Francisco continuará irradiando e será cultivada nos corações de milhões de
pessoas pelo mundo afora. E gerará primaveras de justiça, paz e amor.
Papa Francisco, agora na glória, viverá
presente em nós sempre na luta por tudo o que é justo. Gratidão eterna ao nosso
querido irmão papa Francisco, recebido com aplausos na vida plena pelos anjos e
anjas, por Francisco de Assis, por Jesus Cristo, pelas crianças palestinas massacradas
pelo Estado genocida de Israel com a cumplicidade do desgoverno dos Estados
Unidos e por tantos outros irmãos e irmãs, discípulas e discípulos autênticos
de Jesus de Nazaré que já fizeram sua travessia definitiva.
Rezemos para que os cardeais do Conclave
compreendam o sopro do Espírito Santo e tenham a sensatez de escolher um novo
papa que seja fiel ao Evangelho de Jesus Cristo, a Francisco de Assis e ao
Francisco de Roma.
23/04/2025.
Obs.: A videorreportagem no link,
abaixo, de alguma forma ATUALIZA o assunto tratado, acima.
1 -
Francisco de Assis e o Papa Francisco: Ecologia Integral - Por Frei Gilvander -
10/6/2020
2 - Frei
Betto encontra Papa Francisco e fala na Rádio Vaticano: Dez anos de Francisco,
COP30, Sínodos
3 - Papa
Francisco, “Igreja em Saída e Sinodal”, Cantoria e Oração (CEBs de MG, ES e
RJ): XV Inter CEBs
4 - Papa
Francisco: "Terra, Teto e Trabalho!" Sete Lagoas/MG, 28o Grito dos
Excluídos. Direitos, Já!
5 - Papa
Francisco: “A igreja deve lutar junto com os Movimentos Populares na defesa dos
pobres"-15/7/21
[1] Doutor em
Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em
Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente
de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br
– www.youtube.com/@freigilvander
– No instagram: @gilvanderluismoreira
[2]
Jorge Mario Bergoglio, nascido em 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires,
Argentina, foi eleito Papa Francisco em 13 de março de 2013.
O QUE PEDE DE NÓS A PAIXÃO DE JESUS SEGUNDO O
EVANGELHO DE LUCAS? (Lc 22,1-23,56). Por
frei Gilvander Moreira[1]
A paixão de Jesus Cristo é narrada nos
quatro Evangelhos da Bíblia. Em Lucas, começa com o anúncio da traição de Judas
(Lc 22,21-23). Estando reunido com seus discípulos e discípulas pela última
vez, Jesus anuncia: "A mão daquele
que me trai está comigo sobre a mesa". Este jeito de falar acentua o
contraste. O traidor seria um íntimo. Ser traído por um companheiro reforça o
heroísmo do líder (cf. a História e a Mitologia grega). O nome Judas ajuda a
associar a judeus, a Judá. É, provavelmente, uma forma de tentar inocentar o
Império Romano, ao lado do governador Pilatos “lavando as mãos”, o que é muito
pouco provável historicamente, pelo caráter sanguinário e opressor de Pilatos,
conforme escreveu o historiador Flávio Josefo, do 1º século da Era Cristã. Para
os judeus, a comunhão de mesa era a expressão máxima da amizade, da intimidade
e da confiança. Jesus ser morto na cruz não se trata de predestinação nem de
fatalismo. Em um mundo organizado a partir do egoísmo e da ganância, quem
decide viver o amor vai ser condenado “a morrer crucificado”.
Segundo os Evangelhos de Marcos e
Mateus, Jesus está desesperado. “Apavora-se, angustia-se”. Muito diferente, em
contrapartida, é o relato de Lucas. Lucas não descreve diretamente a angústia
de Jesus e omite a frase: "A minha
alma está triste até a morte". Não aparece o tríplice e inquieto ir e
vir de Jesus. Os discípulos são repreendidos somente uma vez e também a oração
é proferida somente uma vez.
Lucas acrescenta o seguinte: o anjo que
conforta Jesus (Lc 22,43)[2];
a oração que, no momento da agonia, se faz mais forte e insistente, e o suor de
sangue; "como de costume" (cf. Lc 21,37), afasta-se dos discípulos
"a um tiro de pedra"; não reza prostrado por terra, mas
"dobrando os joelhos" (naquele tempo o costume era rezar em pé), e os
discípulos adormeceram "de tristeza".
"Os discípulos o acompanhavam". Aqui aparece o verbo
técnico do seguimento. Jesus e os discípulos estão juntos, mesmo se em atitudes
contrastantes; e, se caem de sono, é "de tristeza". Lucas procura
desculpá-los revelando ternura. A tensão entre Jesus e os discípulos, em Lucas,
é, na verdade, lembrada, mas também, de certa forma, dissolvida. Lucas sabe
muito bem que, na realidade, os discípulos abandonaram Jesus no momento mais
trágico e que Pedro até mesmo o renegou, mas sabe também que, depois, estes
mesmos discípulos deram a sua vida por Jesus Cristo e seu Evangelho.
Jesus, que supera a tentação rezando, é
o quadro. A moldura é "orai para não
entrardes em tentação". Lucas quer ensinar às comunidades que, se
pretendem superar as tentações, é necessário rezar, como fez Jesus. É como diz
a sabedoria popular: "Certos "problemas" só se resolvem com reza
"brava"". A oração é a única arma capaz de deter a tentação de
querer instaurar o Reino com a violência do poder.
Por que Judas trai Jesus? Porque não
concorda com a forma de Jesus exercer a sua liderança messiânica, não
eliminando os inimigos (cf. Lc 9,54). E também Judas trai Jesus pela idolatria
do dinheiro (cf. Lc 16,13[3]).
Segundo Lucas, no tempo da Paixão, Jesus e os discípulos estão unidos na mesma
luta.
Narrada em Lc 22,47-53, o que a prisão
de Jesus quer nos dizer? O primeiro traço que desperta a atenção do leitor
estudioso são os silêncios. Lucas diz que Judas "se aproximou de Jesus para beijá-lo". Mas não diz se de
fato o beijou. Em seguida, não existe nenhum aceno à prisão e nenhuma
referência à fuga dos discípulos. Lucas procura calar, embora supondo-as, sobre
as coisas mais humilhantes que Jesus sofreu. Jesus é traído, aprisionado e
abandonado, mas é, apesar disso, sempre o Senhor glorioso e inatingível.
Para Lucas, Jesus é eminentemente
misericordioso, aquele que sempre perdoa. Lucas não perde oportunidade de
colocar também em evidência que Jesus e compassivo-misericordioso. Mais do que
o discurso, o gesto de Jesus na hora em que seu discípulo decepa a orelha de
Malco, um segurança do sumo-sacerdote ("E
tocando-lhe a orelha, curou-o") revela a lógica que o guia: Não à
violência, nem mesmo para resistir a outra violência, mas somente o amor. Jesus
é coerente com o seu ensinamento de amar os inimigos, inclusive. A distância
entre Jesus e os discípulos não poderia parecer maior, na compreensão. Para uns
discípulos é lógico resistir. A paixão de Jesus não aconteceu nem porque Deus
quis a morte do seu Filho – o Deus da vida não é sádico! -, nem porque Jesus
era masoquista e queria morrer, mas foi consequência da opressão humana
(sistema e pessoal) e da arrogância dos poderosos da economia, da política e da
religião, que, já naquele tempo, sentiam-se donos da vida dos seres humanos.
Jesus assumiu o martírio por solidariedade a todas as vítimas do mundo, a
todos/as os/as crucificados/as da história, de todos os tempos.
O dinheiro recebido por Judas (Lc 22,5)
para trair Jesus, segundo Mt 26,15, tratou-se de trinta siclos de prata (e não
de trinta denários, como se afirma frequentemente). Era o preço que a Lei
fixava para a vida de um escravo (Ex 21,32), o equivalente a quatro meses de
trabalho. Logo, Jesus foi entregue pelo preço de um escravo (cf. Mt 26,15).
Diferentemente de quanto afirmam os
Evangelhos de Marcos (Mc 14,48-49) e Mateus (Mt 26,55), as últimas palavras de
Jesus não são dirigidas à multidão, mas diretamente aos mandantes ("chefes dos sacerdotes, chefes dos guardas do
Templo e anciãos"). Lucas sabe muito bem que, para prender Jesus veio "uma multidão" (cf. Lc 22,47),
e não os mandantes. Mas ele se dirige diretamente a estes, os verdadeiros
responsáveis. É a eles que Jesus fala, pois são os principais responsáveis pela
condenação de Jesus à pena de morte e sua execução.
E Jesus diante do sinédrio? (Lc 22,66-71.63-65). Após o relato da
prisão de Jesus, Lucas abandona a ordem da narração de Marcos e Mateus,
colocando os episódios diferentemente. Primeiro, a negação de Pedro (Lc
22,54-62); depois, a cena dos ultrajes (Lc 22,63-65) e, por último, o
interrogatório diante do Sinédrio (Lc 22,66-71).
O Sinédrio
era um "parlamento com poder judiciário. Era composto por 71 membros
(Fariseus + Anciãos + Sumo-sacerdote + Saduceus + Escribas). Segundo At
5, pelo menos um fariseu - Gamaliel - pertencia ao Sinédrio. Gamaliel consegue
fazer valer sua opinião no Sinédrio. Segundo At 23, o Sinédrio era composto por
fariseus e saduceus. Não se sabe se pertencer a um destes grupos era algo
relevante para ser membro do Sinédrio ou se, ao contrário, os membros do
Sinédrio eram determinados segundo outros critérios, como família, propriedade
ou função.
"Negado pelo primeiro dos discípulos, espancado e escarnecido pelos
seus adversários, Jesus anuncia diante dos chefes de Israel a sua reivindicação
como Messias e filho de Deus[4]". Está delineada a
figura do mártir, que nada consegue dobrar, nem a traição dos amigos nem a
zombaria dos inimigos. O interrogatório de Jesus é conduzido por todos juntos,
unanimemente, em coro, como se, na condenação de Jesus, ninguém pudesse ser
considerado mais responsável do que o outro. O segundo significado é a absoluta
centralidade de Jesus.
"Se eu vos disser, não acreditareis, e se eu vos interrogar, não
respondereis" (Lc 22,67b-68). Com estas palavras, um pouco enigmáticas, que não têm
nenhum paralelo em Marcos e Mateus, Jesus denuncia o vício de fundo do
interrogatório: a hipocrisia dos juízes, que fingem indagar, mas na realidade
já estão de posse da resposta. "Eles
somente interrogam para encontrar motivos de condenação, não para saber,
portanto não merecem ou não mereceriam uma resposta[5]".
Com esta denúncia, Jesus, o interrogado, se transforma em juiz. É inútil dar
uma resposta, se não existe a sinceridade da pergunta.
O que nos diz a cena de Jesus diante de
Pilatos (Lc 23,1-25)? Lucas insiste
em realçar a unanimidade (em forma de coro) da rejeição de Jesus. Multidão,
sacerdotes e anciãos se sobrepõem. Não se diz que os sacerdotes incitaram a
multidão. Para Lucas, autoridades e multidão são responsáveis do mesmo modo e
no mesmo nível. Além da unanimidade, surpreende o encarniçamento da rejeição.
Os acusadores seguem Jesus em todos os diferentes deslocamentos: do Sinédrio a
Pilatos, de Pilatos a Herodes, de Herodes a Pilatos. Não são somente graves e
infundadas as acusações contra Jesus, mas também e, sobretudo, encarniçada e
furiosa a maneira como o acusam.
Lucas dá a entender que os responsáveis
pela morte de Jesus são as autoridades judaicas, especificamente o Sinédrio, e
inocenta o povo e Pilatos. Se as autoridades do Sinédrio tivessem coragem de
peitar o povo, poderiam optar pela via do apedrejamento, como o farão mais
tarde com Estêvão (At 6 e 7), mas preferem optar pela via política, arrancando
de Pilatos o castigo aplicado aos que se rebelavam contra o império romano
escravocrata.
O que as acusações contra Jesus (Lc
23,1-2) nos dizem? As acusações contra Jesus são fundamentalmente três: a) subverte
a nação (acusação social religiosa); b) impede que se paguem os impostos[6]
(acusação econômica) a César; c) e se proclama rei – acusação política - (cf.
Lc 23,2). A acusação principal é a primeira, de tal sorte que é retomada mais
adiante pelos acusadores ("ele subverte
o povo” (Lc 23,5) e por Pilatos ("Vós
me apresentastes este homem como agitador do povo" (Lc 23,14)).
Os chefes judeus temem a subversão
religiosa. Contudo, diante de Pilatos, deixam entender que o seu temor diz
respeito, acima de tudo, à subversão política, conforme fica sugerido claramente
pela segunda acusação: não pagar tributos a César. Trata-se de uma maliciosa
inversão de perspectiva que comprova a sua falta de sinceridade. Em parte,
porém, eles mesmos se traem, ao insistirem, dizendo: "Ele subverte o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia,
onde começou, até em Jerusalém” (Lc 23,5). Logo, era o ensinamento de Jesus
que metia medo nas autoridades opressoras e exploradoras.
E a inocência de Jesus (Lc 23,3-5)? Por
três vezes, Pilatos declara publicamente que Jesus é inocente (cf. Lc
23,4.14-15.22) e por três vezes externa o desejo de soltá-lo (Lc 23,16.20.22).
Contudo, ao final, entrega Jesus "ao
arbítrio deles" (Lc 23,25).
Segundo muitos biblistas, o objetivo de
Lucas é o de desculpar Jesus (e os cristãos) diante do império romano de
qualquer acusação política. A sociedade romana não precisaria temer nada dos
cristãos. Jesus não teria nada a ver com os zelotas, do tipo Barrabás, diz
Lucas. Mesmo se o seu fundador foi crucificado - processado por um procurador
romano e sentenciado com a condenação que os romanos reservavam aos revoltosos
-, a acusação de sublevação que lhe foi imputada era completamente infundada. Na
década de 80 do 1º século, com as pessoas cristãs sendo expulsas da sinagoga,
Lucas percebe que é melhor ir infiltrando no império romano que confrontá-lo
abertamente, o que poderia levar à exasperação da perseguição às pessoas
cristãs.
A ironia da troca entre Barrabás e
Jesus (Lc 23,18-19) é, em Lucas, muito mais descoberta do que em Marcos e
Mateus. Acusam Jesus de ser um subversivo e pedem a libertação exatamente de um
subversivo! Com efeito, Lucas descreve Barrabás assim: "Este último havia sido preso por um motim na cidade e por
homicídio" (Lc 23,19). Lucas quer dizer: este povo não sabe o que faz,
não tem cabeça, é massa e não povo. Por ironia da história, Jesus, que tinha
sido acusado injustamente de amotinar o povo, é entregue ao arbítrio de seus
acusadores em troca de um condenado por "subversão e assassinato".
E averdade de Jesus? Se de um lado Jesus rompe o esquema teocrático, irritando os judeus, por outro lado
rompe o esquema do absolutismo político, irritando
os romanos. Assim Jesus foi um profeta religioso-político, não somente um
revoltoso político. Todavia, as coisas "religiosas" que disse e que
fez eram também socialmente e politicamente "perigosas".
E Jesus diante de Herodes (Lc 23,8-12)? A novidade mais
importante do relato de Lucas é o comparecimento de Jesus diante de Herodes (Lc
23,8-12), algo que os outros evangelhos não mencionam. Lucas ainda acrescenta:
a partir desta data, Pilatos e Herodes, antes inimigos, fazem as pazes. Para a
comunidade de Lucas isso tem um sentido muito claro e dramático, que se
expressa na oração da primeira comunidade cristã em At 4,24-30: trata-se da
união dos poderes opressores e violentos para destruir o ungido de Deus, como
já o dissera o Salmo 2. "Nesse mesmo
dia Herodes e Pilatos ficaram amigos entre si" (Lc 23,12). Contra a
verdade de Jesus, estão de acordo também aqueles que em outras coisas são
inimigos, como precisamente os judeus e os romanos.
E a crucificação e morte de Jesus (Lc 23,26-49)? Lucas está muito
interessado em mostrar a grandeza ética de Jesus, representando-o como o modelo
do mártir cristão. Lucas enfatiza a inocência de Jesus, já enfatizada no
processo diante de Pilatos e aqui reconhecida pelo bom ladrão (Lc 23,41) e pelo
centurião pagão (Lc 23,47).
Jesus passou toda a sua vida em perene
busca dos injustiçados, excluídos e dos pecadores, e agora morre na cruz entre
dois malfeitores (Lc 23,33). Falou de perdão e pregou o amor aos inimigos (cf.
Lc 6,27-42; 15) e agora, na cruz, não somente rejeita a violência, mas perdoa
os seus crucificadores (Lc 23,34) e morre por aqueles que o rejeitam,
ilustração viva da misericórdia de Deus, de que fala toda a Escritura Sagrada.
O mártir afirma o homem diante de Deus, Jesus afirma Deus diante da pessoa
humana.
A caminho do Calvário (Lc 23,26-32) o
que nos diz? No caminho para o calvário, os soldados romanos propositalmente
não são citados. A estrada que conduzia do palácio do governador ao lugar da
execução, fora dos muros, não era longa. O condenado, porém, era obrigado a
passar pelas ruas do centro de Jerusalém. A condenação devia ser pública e
servir de escárnio. As tropas de ocupação podiam obrigar qualquer um a prestar
um serviço de ordem pública. Simão, de Cirene (de fora da Palestina), ajuda
Jesus a carregar a cruz. "Vinha do
campo" indica que era um discípulo (cf. Lc 6,1). Lucas utiliza, ao
contrário, uma expressão mais genérica, de uso civil: "tomaram". E continua: "e impuseram-lhe a cruz para levá-la atrás de Jesus" (Lc
23,26). Simão, personagem representativo ("certo") de um grupo real (nome próprio) de discípulos oriundos
da diáspora judaica ("que vinha do
campo", "de Cirene” (cf.
At 11,20; 13,1), é figura do discípulo que faz sua a cruz de Jesus, levando até
o fim o seu seguimento (cf. Lc 9,23; 14,27).
Nos sepultamentos judaicos, estavam
sempre presentes algumas mulheres que elevavam lamentos fúnebres. Isto fazia
parte do rito. Para os sentenciados à morte, porém, estavam proibidos os
lamentos fúnebres, proferidos em público, porque o justiçado era considerado
uma maldição (cf. Dt 21,22-23). As mulheres que seguem Jesus demonstram, com o
seu corajoso testemunho, que ele não é um malfeitor, mas um profeta que está
padecendo a sorte de todos os profetas: o martírio[7].
"Pai, perdoa-lhes" (Lc
23,34). A crucifixão era um castigo imposto pelo império romano aos que se
engajavam politicamente fazendo oposição ao império. Curiosamente, à direita e
à esquerda de Jesus são crucificados dois líderes da oposição ao império,
chamados de malfeitores. O Crucificado de Lucas não está em silêncio, mas fala:
às multidões, ao Pai, ao ladrão arrependido. Jesus não somente perdoa, mas
desculpa. Não morre ameaçando com o juízo de Deus, mas perdoando e desculpando.
Toda a Paixão, segundo Lucas, está, efetivamente, atravessada pela
misericórdia: o gesto de Jesus que cura a orelha do servo do Sumo Sacerdote, o
olhar benevolente a Pedro que o renega e a palavra de perdão aos que o
crucificam. Jesus não dá pessoalmente o seu perdão, mas o pede ao Pai. Deve
ficar claro que o seu perdão remete ao do Pai. A cruz é o esplendor do perdão do
Pai. Morrer perdoando é uma característica essencial do mártir cristão.
"Salva-te a ti mesmo!" (Lc
23,35b.37.39). Observe-se a insistência na expressão "salvar a si
mesmo", dirigida a Jesus por todos os três representantes da
incredulidade: os chefes, os soldados e um dos dois malfeitores. Renunciando
salvar a si mesmo, ele permanece solidário com todas as pessoas que, na morte,
podem esperar salvação somente de Deus - abandonando-se a ele na fé.
"Jesus, lembra-te de mim!" (Lc
23,39-43). O primeiro malfeitor é, provavelmente, um indomável zelota, que,
mesmo na morte, continua fiel à sua opção de se rebelar contra o domínio
estrangeiro, para instaurar o reino de Deus. O ladrão arrependido confia nele
prontamente ("Jesus, lembra-te de
mim!"), e Jesus responde com a sua pessoa, assegurando-lhe uma vida de
comunhão com ele ("estarás comigo"),
e logo ("hoje"). A um
pedido que remetia ao futuro ("quando
vieres no teu reino"), Jesus responde, remetendo ao presente ("hoje")[8]. No
episódio dos dois malfeitores estão presente a misericórdia e a justiça.
"Dizendo isso, expirou"
(Lc 23,44-46). Para a comunidade de Lucas a cruz é o momento último de
reafirmar a fidelidade ao projeto do Pai, à missão que recebeu pela unção do
Espírito. Quem morre ali é o mártir, fiel até o fim. A cruz é o momento: a) do
perdão maior, do perdão àqueles que lhe tiram a vida (Lc 23,34. Cf. Estevão em
At 7,60); b) da promessa da vida (Lc 23,43) para aquele que na última hora
reconheceu o sentido de sua missão; c) de afirmar, no último suspiro, a
confiança no Pai (Lc 23,46).
Diferentemente do que relatam Marcos e
Mateus, para Lucas, "a vida de Jesus
não termina com uma trágica interrogação, mas na serena convicção do cumprimento
de uma missão libertadora[9]".
Para Lucas não houve uma salvação da
morte, mas na morte.
E as Sete Frases exclusivas de Lucas o
que nos dizem? Eis Sete frases de Jesus
que só Lucas nos conservou e nas quais transparece a vitória da vida que a
morte não conseguiu matar:
1) "Desejei ardentemente comer esta páscoa com
vocês" (Lc 22,15).
2) "Façam isto em memória de mim!" (Lc
22,19).
3) "Simão, rezei por você, para que não
desfaleça a sua fé!" (Lc 22,32).
4) Na hora da negação de
Pedro, Jesus fixa nele o olhar, provocando o choro de arrependimento (Lc
22,61).
5) No caminho do
calvário, Jesus acolhe as mulheres: "Filhas
de Jerusalém, não chorem por mim!" (Lc 23,28).
6) Na hora de ser pregado
na cruz, ele reza: "Pai, perdoa,
porque não sabem o que fazem" (Lc 23,34).
7) Ao ladrão pendurado na
cruz ao seu lado ele diz: "Hoje
mesmo estarás comigo no paraíso!" (Lc 23,43).
Estas frases nos dão os
olhos certos para ler e a saborear a descrição da morte, do enterro e da
ressurreição de Jesus.
Enfim, Jesus aceitou ser
crucificado por infinito amor à humanidade e a toda a Criação, e pede de nós
compromisso com a libertação de todos/as que estão crucificados atualmente. A crucificação de Jesus foi consequência da sua opção
incondicional pelo reino de Deus, de liberdade, de justiça, de amor, de paz, de
vida! Os poderosos da época foram desmascarados. Jesus incomodou a religião, o
sistema político do império romano, os grandes do poder econômico e passou a
ser uma ameaça para os exploradores. Por isso, não tem sentido fazer
memória da paixão de Jesus, do seu martírio, sem reconhecer que Jesus
continua padecendo, encarnado na vida de tantos irmãos e irmãs vítimas de um
sistema que oprime, exclui, mata. E como discípulos e discípulas de Jesus,
devemos seguir com coragem e esperança seus passos, em defesa de vida com
dignidade para todos e todas e para toda a Criação, na certeza de que a morte
não tem a última palavra... O horizonte é de ressurreição!
18/04/2025.
Obs.: A
videorreportagem no link, abaixo, de alguma forma ATUALIZA o assunto tratado,
acima.
1 - SENTIDO DA PÁSCOA DA CRUZ NAS PESSOAS
CRUCIFICADAS E NOS POVOS MARTIRIZADOS (JO 18 E 19): EVANGELHO PARA ALÉM DOS
TEMPLOS. Por Nancy Cardoso, Gilvander Moreira e Darlan Oliveira. 18/04/25
2 - Segue Sexta-feira da Paixão em Ibirité/MG.
MRS/Vale, despejo/DEMOLIÇÃO de CASAS SEM DECISÃO JUDICIAL
3 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim,
MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3
4 - Paixão e calvário no despejo de Ocupação em
Miravânia, norte de MG. Zilah. Vídeo 5. 10/7/2019
[1] Doutor em
Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em
Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente
de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br
– www.youtube.com/@freigilvander
– No instagram: @gilvanderluismoreira
[2]
Pela terceira vez em Lc Deus
se manifesta diretamente a Jesus. A primeira vez foi no Batismo (Lc 3,21-22). A
segunda, na Transfiguração (Lc 9,35). E agora, a terceira vez, no Horto das
Oliveiras (Lc 22,43).
[3]
“Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o
outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e
a Mamom.”
[5]
O. SPINHETOLI, Da Luca, Assis,
Cittadella, 1982, p. 893.
[6]
O Império Romano dominava os povos conquistados através de uma pesadíssima
carga tributária.
[7]
Mencionando a presença da multidão e das mulheres, Lucas mostra a sua
predileção pelas grandes multidões e pela presença das figuras femininas. Ver,
a propósito, ROSSÉ, G., Il vangelo di
Luca, Roma, Città Nuova, 1992, p. 967.
[8] Cf. GRELOT, P., De la mort à la vie eternelle, Paris,
Cer, 1971, pp. 201ss.
[9]
G. ROSSÉ, Il vangelo di Luca, op.
cit., p. 987.
JESUS LIVRA
MULHER DE SER ASSASSINADA POR RELIGIOSOS(Jo 8,1-11) - Por
frei Gilvander Moreira[1]
Reprodução Redes Virtuais
Por que Jesus não condena a mulher acusada de
adultério, mas a livra de ser linchada por pessoas religiosas? Com o injusto
título de “mulher adúltera”[2],
no Evangelho de João, em Jo 8,1-11, temos Jesus acolhendo e defendendo uma
mulher arrastada por religiosos fariseus e doutores da lei e ameaçada de morte.
Não
todos certamente, os doutores da Lei e fariseus ameaçavam assassinar, sob
apedrejamento, uma mulher, conforme eles dizem, surpreendida em adultério. Se
muitos doutores da lei e fariseus excluíam as mulheres segundo a lei da pureza
e da impureza, logo eram inimigos delas. Por isso não podemos acreditar, sem
mais, que estivessem falando a verdade. Acusar a mulher de adultério pode ter
sido calúnia, difamação e injúria proferida por eles ou por alguém.
Quando o Evangelho de João menciona o termo “judeus”, pode estar se
referindoa alguém do povo de cultura judaica[3],
mas mais frequentemente parece se tratar de lideranças do judaísmo reformador.
Esses são os fariseus que ameaçam a mulher e querem vencer Jesus em uma cilada.[4]Antes
da década de 70 do século I da Era Comum, a religião judaica era plural, mas
depois da guerra judaica em que o exército do império Romano, escravocrata,
devastou a cidade de Jerusalém e destruiu o templo (anos 70), só sobreviveu o
grupo do judaísmo rigorista, fundamentalista e moralista. Jo 8,1-11 foi escrito
nas décadas de 80 ou 90 do 1º século. Isto indica que são estes judeus
tradicionalistas que tramam para se apoderarem de Jesus, matá-lo, e linchar a
mulher.
Parte
dos fariseus da época de Jesus era constituída por lideranças populares
comprometidas com a libertação do povo oprimido. Eles ensinavam o resgate das
tradições como forma de resistência aos opressores e exploradores. O que antes
era uma pluralidade de crenças, esperanças e práticas foi sendo reduzido a uma
única forma. O que era diferente passou a ser demonizado (Jo 8,48), até
assassinado “em nome de Deus” (Jo 16,2). Após a destruição de Jerusalém nos
anos 70, os judeus chegaram a um acordo com os romanos. O judeu que se filiasse
a uma sinagoga e nela pagasse o imposto teria seus direitos reconhecidos pelo
Império. Mas quem não se adequasse... ficava excluído. As pessoas que aderiam
às comunidades cristãs foram excluídas da sinagoga como a mulher que estava
sendo ameaçada de morte por fariseus e doutores da lei.
No
Primeiro Testamento bíblico, vários textos proféticos comparam o adultério com
o rompimento da aliança com Deus e os líderes do Judaísmo rabínico
interpretaram assim as comunidades cristãs que se afastavam da sinagoga. Eram
como uma mulher casada que traísse o seu marido (Deus) e se ligasse a amantes.
Assim se diz nos livros de Jeremias e de Oseias: “O Senhor me disse: - Você viu o que fez Israel, a infiel? Subiu em
todo monte elevado e foi para debaixo de toda árvore verdejante a fim de
prostituir‑se” (Jer 3,6). “Israel, (...) você se prostitui, abandonando o seu Deus; você ama o salário
da prostituição em cada local onde o trigo é malhado” (Os 9,1-2).
Após
o ano 70 sobraram do judaísmo somente os fariseus rigoristas e os cristãos que eram
respeitosos com o diferente e abertos, enquanto os fariseus fundamentalistas
foram se tornando cada vez mais intolerantes. Chegaram ao ponto de se
excomungarem mutuamente. Por isso o Evangelho de João acentua as brigas entre
Jesus e os judeus.[5]
Neste contexto, o conflito com a autoridade dos judeus provoca uma releitura do
ensinamento e da práxis de Jesus. O fato concreto em Jo 8,1-11 é que a mulher
estava na iminência de ser morta por eles.
Como era a Lei do adultério no
tempo do Primeiro Testamento bíblico? Nos livros de Levítico (Lv 20,10) eDeuteronômio (Dt 22,23) está prescrita
a pena de morte para as pessoas adúlteras, sem, no entanto, afirmar qual o tipo
de pena a ser aplicada. No livro de Levítico há a prescrição: “Se um homem cometer adultério com a mulher
de outro homem, com a mulher de seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão
punidos com a morte” (Lev 20,10).
Para configurar um adultério a outra mulher devia ser
casada e judia. Se a mulher não fosse casada, não era adultério, mas
fornicação.Na Bíblia, o adultério
era punido com a morte do homem adúltero e da mulher adúltera, se o adultério
acontece na cidade. No entanto, se o adultério ocorresse na zona rural, no
campo, apenas o homem deveria ser punido com a pena de morte. Se fosse no
campo, não teria como provar se houve o consentimento da mulher, pois se ela
pedisse socorro, dificilmente alguém poderia escutar; na cidade, se a mulher
gritasse pedindo socorro, alguém ouviria e teria como comprovar que a mulher
estava sendo vítima.
No
caso da mulher adúltera desse Evangelho de Jo 8,1-11, nada se diz sobre isso
(onde, com quem e nem como foi). O importante para os seus adversários era
condená-la e principalmente apoderar-se de Jesus. Jesus, percebendo a cilada de
doutores da lei e de fariseus, se levantou e disse: “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra” (Jo
8,7). Eles “olharam no espelho” e foram embora, um a um. A mulher, no centro
das atenções, reconhece Jesus como Senhor
(Jo 8,11). Jesus, de pé, após dialogar com a mulher, lhe diz: “Eu também não te condeno. Podes ir, e não
peques mais” (Jo 8,11). Observe um detalhe: Jesus disse para a mulher não
voltar a pecar. Ele não disse para a mulher deixar de amar. Nas entrelinhas,
Jesus diz: continua sua vida, mulher, amando, lutando e festando, sendo humana e
digna de respeito, cuidado e amor.
O autor do Quarto Evangelho termina o capítulo 8 nos
informando: “Eles – doutores da Lei e
fariseus - pegaram pedras para atirar em
Jesus. Mas Jesus se escondeu e saiu do Templo” (Jo 8,59). Ou seja, eles, de
fato, queriam era condenar Jesus à pena de morte e apedrejá-lo, como fizeram
com o diácono Estevão (At 7,55-60).
A narrativa da Mulher Adúltera está inserida dentro da
narrativa da Festa das Tendas no Evangelho de João. De tantas maneiras ela está
fora do lugar! É só uma isca para tentar atacar Jesus em uma armadilha de
homens moralistas que se dizem religiosos. A passagem de Jo 8,1-11 nos séculos
I e II não constava nos manuscritos do Evangelho de João, mas estava inserida em
alguns manuscritos do Evangelho de Lucas. Alguns biblistas pensam que poderia
ser atribuída a Lucas, pois parece ter um estilo mais lucano que joanino. Há,
inclusive, um lugar em Lucas onde ficaria bem encaixada: (Cf. Lc 12,38 +).
Isso, porém, não diminui o fato de se tratar de uma narrativa que tem valor
bíblico, de inspiração incontestada e com valor histórico.
Em Jo
8,1-11, Jesus testemunha a vontade de Deus, que não quer a morte do pecador, mas
sim que se converta e viva.[6]Em
Jo 2,3 e 4 aparece claramente uma evolução na fé que mostra a desconfiança de
Jesus a respeito dos judeus (Jo 2,23-4,42).
Importante
observarmos que as mulheres têm participação de destaque nas Comunidades
Cristãs do discípulo amado, o quarto evangelista. As mulheres no
Evangelho de João: Maria, a mãe de Jesus, está no início e no fim. Em Jo 2,5, aparece a função da
mãe de Jesus. Em Jo 4,1-42 se trata da samaritana que é apresentada como
exemplo a ser seguida.
É bom conferir as diferenças entre as conversas de Jesus com Nicodemos
e com a samaritana. Esta é mulher, anônima, desprezada socialmente e
marginalizada. Ela não procura Jesus diretamente, mas é uma mulher com sede de
vida, disposta a ter uma água que não seja a água parada no poço. Sente-se
atraída pela proposta de Jesus, crendo, aceitando e reconhecendo nele o
Messias. A conversa com a samaritana acontece em plena luz do dia.
No
centro da confrontação entre Jesus e os judeus aparece outra mulher, essa da
qual fala o evangelho deste domingo, aquela que corria o risco de ser
apedrejada acusada de adultério.
Ao narrar
o sétimo sinal, em Jo 11,20-29 o Evangelho de João fala de Marta e Maria, irmãs
de Lázaro. No centro de Jo
está a confissão de Marta (Jo 11,27) que reconhece Jesus como Messias. A
seguir, no final do ministério público de Jesus, Maria (de Betânia, que já
tinha sido apresentada como irmã de Lázaro), com um gesto profético, unge os
pés de Jesus (Jo 12,1-11). O seu gesto foi repetido pelo próprio Jesus na
última ceia com seus discípulos (Jo 13,1-16). Na hora em que Jesus está na
cruz, enquanto a maioria dos discípulos foge, um grupo de mulheres o
acompanham. O evangelho fala que aos pés da cruz estavam firmes a mãe de Jesus, Maria, a mulher de Cléofas,
e Maria Madalena.
Na
madrugada da ressurreição, o Quarto Evangelho fala de Maria Madalena, a
apóstola dos apóstolos, a que recebeu a primeira e a mais importante de todas
as ordenações:[7]“Vai, porém, a meus irmãos e dize-lhes: Subo
a meu Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17). E Madalena,
fiel discípula, foi e anunciou aos discípulos: “Vi o Senhor” (Jo 20,18). Maria Madalena é a mulher da busca
incansável. A credencial para ser apóstolo é ter visto o Senhor ressuscitado e
ter sido enviado a anunciá-lo.[8]
Por isso, desde o começo da tradição apostólica, Maria Madalena recebeu o
título de apóstola dos apóstolos.
Enfim,
seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos
fundamentalismos e da idolatria do fundamentalismo que tenta se sustentar em
posturas moralistas e preconceituosas. Exige também rebeldia, coragem, audácia
diante de costumes que deformam as consciências e de modas que aniquilam o
infinito potencial humano existente em nós. Jo 8,1-11 critica com veemência as
posturas hipócritas de pretensos líderes religiosos de muitas igrejas que usam
e abusam de versículos bíblicos para tentar justificar posturas racistas, misóginas,
machistas, patriarcais, o que abre espaço para a reprodução de discriminações e
violências contra as mulheres, contra os negros e as pessoas que têm orientação
sexual homoafetiva.
A
biblista Nancy
Cardoso no texto “Atire a primeira pedra, ai, ai, ai – Reflexões sobre Jo
8,1-11” nos recorda que “em 2023 o STF considerou inconstitucional os crimes de
honra. Em 2024, foram 1450 feminicídios, a grande maioria por pessoa próxima
e/ou familiar. Diz-se à boca pequena: “os homens não sabem porque matam, mas as
mulheres sabem porque são mortas”. Até quando? Vamos aprender com Jesus a
rabiscar no chão e murchar o machismo que mata, violenta e silencia. Porque…”
Concordo
integralmente com o irmão Marcelo Barros ao escrever que: “Temos que sonhar
com uma Igreja justa e igualitária em relação à mulher. Não basta apenas abrir
os ministérios para as mulheres. É urgente voltarmos ao evangelho de Jesus e
acabarmos com o sistema de duas classes na Igreja: as pessoas ordenadas e as
não ordenadas. Só retomando a igualdade do discipulado de Jesus e a autonomia
das comunidades para celebrar a ceia e os sinais do amor divino, superaremos a
marginalização estrutural da mulher na Igreja. A Igreja precisa ser exemplo de
novo modo de ser no mundo, para que consigamos vencer a violência doméstica, o
feminicídio, o machismo, o patriarcalismo e tantas situações nas quais a mulher
é vítima.”
Essa passagem do Evangelho de João é eloquente!
Fala muito da compaixão e da misericórdia de Jesus! E fala muito também da
justiça de Jesus, da sua coragem de desmascarar a hipocrisia social dos homens
machistas e prepotentes que ali estavam representados. Ao impedir o feminicídio
da mulher, Jesus, mais uma vez, se posiciona contra o poder opressor. Não
é por acaso, salvo engano, que a Igreja ignorou essa passagem bíblica por
muitos anos, demorou a introduzi-la na liturgia. Certamente, pela conivência
com esse sistema patriarcal, machista, que discrimina e exclui a mulher.
A atitude de Jesus de Nazaré nos faz refletir que a Igreja precisa,
urgentemente, voltar à fonte, que é o evangelho de Jesus, também em relação à
luta, à defesa, à valorização, ao respeito devido à mulher nas diversas
realidades da vida. Depois de tantos séculos de história e de ser movida e
animada pela força das mulheres, a Igreja, dirigida por homens, ainda não é
capaz de deixar-se iluminar plenamente por esta ação libertadora de Jesus
diante da opressão da mulher. Que os esforços do Papa Francisco nesse sentido
encontrem eco nos corações e nas mentes das lideranças! Que tenham a
coragem de "amar como Jesus amou"!
04/04/2025.
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, de alguma forma ATUALIZAM o assunto
tratado, acima.
1 - NÃO AO PL QUE AMPUTA 5.500 HECTARES DA APA
CHAPADA DO LAGOÃO, DOM GERALDO MAIA/DIOCESE DE ARAÇUAÍ/MG
2 - ANTIGO DOPS OCUPADO EM BH/MG PELOS
MOVIMENTOS SOCIAIS. CADÊ O MEMORIAL DOS DIREITOS HUMANOS, Zema?
3 - MENSAGEM DA PARÁBOLA DO PAI AMOROSO DIANTE
DE DOIS FILHOS (Lc 15,1-3.11-32) - Por frei Gilvander
4 - FREI GILVANDER NA CELEBRAÇÃO NO ACAMPAMENTO
NOVO PARAÍSO, JEQUITAÍ/MG: 28 FAMÍLIAS na TERRA. Vídeo 4
[1] Doutor em
Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em
Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente
de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ) e do CEBI/MG (Centro Ecumênico de Estudos
Bíblicos – www.cebimg.org.br ; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.youtube.com/@freigilvander –
No instagram: @gilvanderluismoreira
[2]Os títulos e subtítulos das
passagens bíblicas não existem nos manuscritos mais próximos dos originais.
Foram atribuídos por tradutores somente após vários séculos.