terça-feira, 10 de setembro de 2013

O bom Samaritano (Lc 10,25-37) entre o escriba e o dono da pensão. E a identidade do próximo?, texto de frei Gilvander. 10/09/2013

O bom Samaritano (Lc 10,25-37) entre o escriba e o dono da pensão. E a identidade do próximo?
Gilvander Luís Moreira[1]

Para uma interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, analisar a postura do escriba e a do dono da pensão, a identidade do próximo e as consequências das ações do bom samaritano. Eis o que segue.

O escriba diante do bom samaritano.
Em Lc 10,25-37, Jesus está contando o episódio-parábola para um escriba, que não foi citado no grupo dos não misericordiosos. Ao falar diretamente dos companheiros, Jesus mandou um recado para seu interlocutor: o escriba. Não lhe joga na cara que ele é insensível e não misericordioso, mas dialoga e o faz refletir, com base na prática cheia de compaixão e misericórdia de alguém que se faz próximo gratuitamente, o que desconcerta o escriba. O que coloca em xeque a mentalidade do escriba não é o discurso, mas o testemunho de alguém compassivo e misericordioso, que não é Jesus, nem Deus, mas um samaritano: estrangeiro, considerado herege e impuro, discriminado, tachado de pagão, um “bárbaro”; enfim, um injustiçado.
Esse grupo dos não misericordiosos desconsidera o interesse pedagógico de Jesus no episódio-parábola. Jesus estrategicamente não coloca um escriba no lugar do sacerdote ou do levita para deixar aberta a possibilidade de dialogar com ele, pois seu objetivo é cativá-lo para se tornar um verdadeiro discípulo. Jesus não o exclui a priori.
O dono da pensão tem um papel importante no episódio-parábola, pois é ele quem viabiliza a continuação da viagem do samaritano, possibilita-lhe partir sem deixar nome nem endereço, assim, ser solidário de modo gratuito e libertador, sem criar com o excluído uma relação de dependência que pudesse ter ou esperar recompensa. Sem o dono da pensão, seria difícil para o samaritano deixar o homem semimorto recuperando-se. Sem a continuidade dos cuidados, a “ajuda” do samaritano seria paliativa e poderia resultar insuficiente. Se interrompesse completamente sua viagem até o ferido se recuperar, certamente criaria um laço de dependência entre eles. Jesus e Lucas não defendem “solidariedade paliativa”, que cria dependência. A figura do dono da pensão é uma “ponte” que possibilita ao episódio-parábola ser uma “estrela” indicando como amar de modo verdadeiramente eficaz e desinteressado.
O samaritano não exigiu que o dono da pensão fosse solidário gratuitamente como ele foi. O samaritano tenta cativar o outro para também entrar na dinâmica da compaixão e misericórdia, mas sem impor nada. Ao pagar os dois denários, ele manifesta amor com toda sua “força”. Esta, na interpretação judaica, refere-se aos bens econômicos. O samaritano reconhece a alteridade e a autonomia do dono da pensão, o qual tem o direito de ser e agir de modo diferente. Aqui aparece mais uma qualidade da solidariedade do samaritano: a humildade. Ele não diz para o dono da pensão: “Faça como eu fiz!” ou “Fiz a minha parte; agora é a sua vez”, o que seria arrogância disfarçada de gratuidade. Não faz proselitismo da sua ação e crença religiosa.
Esta identidade não é neutra. Um violentado, que está “entre a vida e a morte”, define a identidade de cada um dos personagens de Lc 10,25-37. Constatamos que o samaritano é um estrangeiro, um desqualificado, segundo a compreensão judaica; não é um familiar; é um viajante. Mesmo assim se comove ao ver a vítima. Enquanto o sacerdote e o levita se distanciam, ele se aproxima do ferido.
O relato não diz as razões que levaram o samaritano a comover-se. Ele apenas se aproximou para cuidar do homem semimorto. “Mas a ausência de motivos para a atitude dos atores não implica ausência de lógica fundamental da ‘postura’ do samaritano”.[2] “Próximo” não é aquele que se aproxima, mas é aquele que se aproxima de imediato, aparentemente sem motivos. Interrompe “a sua viagem”. Sabe onde levar o ferido. Age como quem tem experiência, sem duvidar. Demonstra confiança: “Quando eu voltar vou pagar o que ele tiver gasto a mais” (Lc 10,35). “Entre o samaritano e o dono da pensão reina a confiança”.[3] O dono da pensão não procura conhecer a identidade do ferido.
Os bens que o samaritano põe à disposição do homem para a cura - o óleo, o vinho, sua própria montadura, os dois denários - não aparecem como perda. Não se afirma que o samaritano perdeu tempo, nem quanto tal ação lhe custou. O óleo e o vinho são frutos da terra e do trabalho humano, provavelmente dele. Logo, ele trata o ferido com o fruto do seu próprio trabalho e não se sacrifica nesse processo. O “perdido” será recuperado com seu próprio trabalho.
O samaritano “ordena” que o dono da pensão cuide do ferido, porque para um dono de pensão o desejo de um cliente é uma ordem, mas é sempre remunerado pelo que faz.
O ferido é colocado no caminho para reestruturar a sua identidade pessoal. O samaritano “sabe” chegar e sabe “desaparecer” na hora oportuna. Ele não deixa seu nome nem seu endereço, é uma figura de alteridade; ele impede “uma submissão a sua pessoa e uma fixação no passado”.[4] Não exigindo reconhecimento, evita “sacrificar no altar do seu desejo o homem ferido”, diria a psicanálise. O ferido é restaurado sem sacrifício próprio. O sacerdote e o levita são identificados, em oposição ao samaritano, no episódio-parábola, pela função que exercem no templo: sacrificar e celebrar o culto.
No versículo 36, Jesus redimensiona a pergunta - Quem se fez próximo? E não mais, Quem é meu próximo? Não levanta mais a pergunta de modo absoluto, mas de uma situação concreta, onde a vida de uma pessoa estava em perigo. É com base no “lugar” onde um homem se confronta com outro caído, à margem, excluído, que se pode identificar o próximo.[5]
Jesus diz ao escriba: “Vá, e faça a mesma coisa”. Com esse imperativo, Jesus chama o escriba a uma conversão radical. Ele deve sair de si mesmo, igualar-se ao samaritano e fazer o que este fez.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 09 de setembro de 2013.
Facebook: Gilvander Moreira





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
Obs.: Esse texto é a “7ª parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander Luís Moreira, publicado no livro  “RECRIAR O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.
[2]    Rodet, La Parabole du Samaritain..., cit., p. 25.
[3]    Idem, ibidem, p. 25.
[4]    Idem, ibidem, p. 27.
[5]    Proposta semelhante é apresentada em Mt 25,35.39.43-44, em que se diz que é no confronto com os excluídos que se define a participação no reino dos céus.

domingo, 1 de setembro de 2013

Relato de Bruno Cardoso, conselheiro dos Direitos Humanos do CONEDH-MG, preso simplesmente por defender os direitos humanos. 28/08/2013

Relato de Bruno Cardoso, conselheiro dos Direitos Humanos do CONEDH-MG, preso simplesmente por defender os direitos humanos.


Encaminho para conhecimento o relato de uma triste situação ocorrida nesse sábado, dia 24/08/2013, em Belo Horizonte, MG. A versão da PM de Minas Gerais ficou registrado no REDS 2013-017430118-001. BO 2013-1327736.

Por Bruno Cardoso. 

Eu estava passando uma agradável tarde de sábado, depois de um encontro de jovens onde teve um bom almoço e vimos o filme "Most - The Bridge", (que entre outras coisas diz da fragilidade de vida humana, que num estalar de dedos se encontra em risco). Peguei uma carona e desci na Cristiano Machado pra pegar meu ônibus na altura do Minas Shopping. Estranhei o grande número de adolescentes e do policiamento reforçado, parecia que algum cantor pop tinha passado por ali. Cheguei no ponto que estava cheio, vi um grupo de uns 10 adolescentes (cerca de 14, 15 anos) entrarem num ônibus pela porta traseira. Esses deram azar, pegaram uma trocadora que bem brava mandou eles saírem, e eles, envergonhados  desceram do ônibus. Aí chegaram uns policiais militares, vi um sargento perguntando pra um cabo, pareciam agitados, - “trouxe o gás de pimenta? Hoje vamos ter trabalho.” E o outro respondeu mostrando na cintura, - “sim”. E logo passa uns oito adolescentes, cerca de 14- 15 anos, com estilo pop de periferia , a polícia os aborda, - “mãos na cabeça!”. Eles prontamente colocam as mãos na cabeça e abrem as pernas, já costumados com o procedimento. O cabo não satisfeito com o tanto que um abriu a perna, dá um chute contra a perna desse menino. E eu ali parado vendo tudo disse: - Moço não faz isso, não precisa disso! Aí veio o Sargento em minha direção e me perguntou, - “quem é você? Ponha a mão na cabeça!”. Eu que tinha falado como qualquer cidadão indignado faria, me apresentei mostrando minha carteira funcional, - sou Bruno, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos, tenho legitimidade pra acompanhar batidas policiais. Ele disse,- “vai com o cabo pra viatura”. Eu disse, - não vou, tenho autoridade pra acompanhar batidas policais. Ele respondeu, - “então você é autoridade, vai pra viatura ou levo você a força”. Respondi: - não vou, vou ficar aqui acompanhando a batida”. Ele pegou forte no braço esquerdo, um outro policial no braço direito, me levaram até a viatura e me colocaram na parte de trás, no camburão onde se encontravam outros três adolescentes. No caminho eles diziam, - “vamos ver então se tem autoridade mesmo, foi fazer graça, se ferrou”. Diante dessa terrível situação peguei o celular, pensei em ligar pro comandante do GATE, ou pra algum deputado da Comissão de DH da ALMG, ou membro do Ministério Público, que fazem parte do mesmo Conselho, mas quando  peguei o celular, um de fora viu e disse “tá ligando!”, abriram rapidamente a porta da viatura, me tomaram a força o celular e me algemaram. Situação em que arranharam o meu pescoço. Vi que, propositadamente, apertaram mais forte a algema do braço esquerdo, que ficou dolorida. Colocaram-me novamente na viatura e liberaram os três adolescentes que ali estavam. Entra e sai um, depois outro policial na parte de trás falando de modo provocativo e ameaçador. Sozinho ali fiquei tentando chamar alguém que passava perto, mas ninguém me atendia. Viram minha intenção, mas  antes que conseguissem entraram no carro e arrancaram a viatura. Pensei por todo ocorrido, vão me fazer um mal pior. Vi ali o quanto fica fragilizado e vulnerável alguém que está sob o poder de outros. Pensei, “quantos devem sofrer por esses caminhos!” Lembrei do Amarildo desaparecido nas mãos da polícia do Rio.  Seguiram pela Cristiano Machado, depois entraram numa área mais favelizada, “vão me entregar pra alguém, será que já estou pronto?” No meio do caminho outra batida policial, o sargento para, desce e acompanha. Ficou alguns minutos que pareceu uma eternidade. Nesse tempo fui tentado dialogar com os outros que de fato estava fazendo minha função, um respondeu, - “função, controlar o trabalho de polícia?” Continuei, “o Conselho é feito por lei Estadual”, “nem o Governador pode fazer isso...” “Peça por favor ao sargento pra vir folgar a algema que está apertada.” Depois o sargento voltou pra viatura, seguiu adiante olhou um lugar e retornou. Voltando pra Cristiano Machado, avistaram um motoqueiro, outra abordagem policial, mais alguns minutos, perguntei, “Pra onde estamos indo?” Pra um hospital, ver esse seu ferimento aí”. Esperei que fosse verdade, pedi novamente ao soldado, por favor peça ao sargento pra vir folgar a algema. “Não estou com a chave”. Mas, foi e passou o recado. O sargento depois da abordagem, abriu a porta da viatura, folgou um pouco a algema, o soldado me revistou, pegou minha identidade e a carteira funcional. Fecharam a porta, voltaram pra viatura e continuaram o caminho. Algumas pessoas no trânsito me viam na viatura, não sentia vergonha mas a vontade de que algum conhecido me identificasse ali. Nesse tempo o soldado ligou pro 190 e passou meus dados. Não tinha muita certeza se de fato ligava, mas comecei a me sentir mais aliviado. Continuando o caminho me levaram pra UPA Nordeste. Ao descer pedi que retirassem as algemas mas não o fizeram. Entrei lá como tantos outros na mesma situação já devem ter por ali passado. Se dirigindo ao funcionário da UPA o soldado perguntou “Tem médico cirurgião?” , “cirurgião?” respondi assustado. “Sim”, com ironia, “pra mudança de sexo”, respondeu o soldado. Fui encaminhado, o funcionário da primeira abordagem me perguntou, “o que houve?” Disse, sou dos Direitos Humanos, fui acompanhar uma abordagem policial, houve um desentendimento e”, “vai contar essa história pro delegado, me cortou o soldado”, “ e pronto, machuquei o pescoço”. Fui encaminhado pra uma médica, repeti a mesma história pra que fosse por mais pessoas identificado, ela viu o machucado, passou um remédio e disse que não era nada grave. Quase perguntei, “você faria uma ligação pra mim?” Mas não tive coragem de pedir o que extrapolava o ofício dela. Voltando pra viatura só aí me retiraram as algemas, fiquei um pouco mais confortável. Pedi, me dê meu telefone, me deixe falar com um advogado, responderam, “não, você liga na delegacia”. No caminho pararam pra comprar um refrigerante, mais uns minutos de espera. No rádio começava um jogo de futebol tocando antes o hino nacional que me pareceu tedioso. Voltando o sargento a viatura prosseguiu até a delegacia da Andradas. Começaram a fazer o B.O. que nunca terminava, ficaram até as 20:00 e nada. Vi uma senhora indo embora, pensei poderia ser a delegada. “Sra. por favor, a sra é a delegada?”, “sim, me respondeu.” Perguntei, a Sra. poderia me autorizar a dar um telefonema pra um advogado? “Não posso, só se tivesse sido entregue a mim, você ainda está sob guarda deles.” E foi embora. Voltei pro sargento e pedi novamente, “me deixe falar com um advogado”. Depois que eu terminar aqui você liga. Peguei o telefone em cima da mesa, a bateria quase acabando. Demorou mais um pouco, “pode, liga.” Liguei pra uma advogada competente e de confiança do Coletivo Margarida Alves. Me atendeu, me orientou e encaminhou um outro advogado do mesmo Coletivo pra delegacia onde seria levado. Mandei uma mensagem pra presidente do Conselho de Direitos Humanos dizendo do ocorrido, e pra uma pessoa querida que me esperava. Acaba a bateria. Mais um passeio na viatura até a outra delegacia onde cheguei mais tranqüilo, logo chegou o advogado popular pra me acompanhar. E aliviado lembrei da poesia e da inconstância dos momentos: “De repente da calma fez-se o vento E das mãos espalmadas fez-se o espanto. Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente.” Prestei o depoimento pra escrivã, pedi a guia de exame de corpo delito. Sai da delegacia  por volta da 23:30 com  certeza de que a Defesa dos Direitos Humanos deve ser cada vez mais forte. Continuemos!

Bruno Cardoso, 27/08/2013.

Reportagem do Jornal BRASIL DE FATO MG sobre a Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte, MG. 28/08/2013.

Reportagem do Jornal BRASIL DE FATO MG sobre a Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte, MG. 28/08/2013.

Reportagem de Leonardo Dupin.

Milhares de Famílias não tem onde morar.
Na zona norte, 1400 famílias ocupam terreno e constroem comunidade Rosa Leão.

O Brasil Fato começa hoje uma série de reportagens sobre as ocupações urbanas de Belo Horizonte. Nos últimos seis anos pelo menos uma nova ocupação surgiu na cidade por ano. Uma situação que desafia o poder dos ricos e do governo municipal, que criminaliza a luta dos pobres por moradia.
A cada semana será mostrada uma ocupação diferente: Camilo Torres (145 famílias), Dandara (1200 famílias), Rosa Leão (1400 famílias), Vila do Cafezal (90 famílias), Zilah Spósito-Helena Greco (160 famílias), Irmã Dorothy (190 famílias) e Eliana Silva (350 famílias).
A equipe do BF foi conhecer as pessoas que se organizam em ocupações para exigir seus direitos, fugir do aluguel e não morar mais de favor. Ouviu também especialistas em planejamento urbano e militantes que vêm trabalhando com essas ocupações. Eles apontam uma solução para o problema: reforma urbana.

Milhares de famílias não têm onde morar
A falta de moradia é um problema que atinge milhares de famílias no Brasil. Um estudo realizado pela Fundação João Pinheiro, em 2008, revela que o déficit habitacional alcança 6.273 milhões de famílias no país. Em Minas Gerais 474 mil famílias não tem moradia adequada. E na região metropolitana de Belo Horizonte, o estudo fala em 115 mil famílias.  
Porém, os números parecem ser maiores. Na inscrição para o programa Minha Casa, Minha Vida, em 2009, o número de inscritos só em BH chegou a 198.000, indicando que o problema tem se agravado com o alto preço dos imóveis e dos alugueis. Situação que contraria o direito a moradia assegurado pela Constituição.

Viúva com oito filhos e um neto luta por moradia na Ocupação Rosa Leão

“Aqui dormem três: eu, Olavo Júnior e a Diana. Embaixo o Darlan Breno. Do outro lado dormem mais quatro”, conta Neide Borges Pacheco, 44 anos, apontando para dois colchões que divide com oitos filhos e um neto.
Dona Neide, como é conhecida, vive há dois meses em uma barraca de lona amarela, na Ocupação Rosa Leão, no bairro Zilah Spósito, zona norte de BH, próximo a Santa Luzia. A ocupação ganhou destaque nesse período, quando cerca de 1 mil famílias sem-teto, espontaneamente ocuparam o terreno de 350.000 , juntando-se a outras 400 que já viviam no local.

Sem ter onde morar
A história que levou Dona Neide a se juntar à Ocupação Rosa Leão, começou há três anos, com o assassinato do filho de nove anos, em Betim. O marido, deprimido pela perda do filho, morreu em seguida. Sem esposo, tendo que cuidar de oito filhos e mais um neto, Neide não conseguia pagar luz, água e aluguel (que subiu de R$300,00 para R$450,00). Foi despejada.
Ela começou, em seguida, uma peregrinação com a família pelas periferias da região metropolitana Belo Horizonte (Betim, Morro Alto, Vila da Fé, Santa Luzia), nunca tendo dinheiro suficiente para morar e comer. Sem alternativa, ela foi viver na rua com os filhos. Foi então que ela tomou uma decisão: “Eu vou invadir um lugar para morar porque não aguento mais”, lembra. “Quando cheguei aqui (Rosa Leão) as pessoas me apoiaram, trouxeram cestas (alimentos), cobertores e me emprestaram um colchão porque eu não tinha nada”, conta ela.

Um futuro melhor
Na ocupação, as condições são precárias. A água e luz foram improvisadas. Não há banheiros e os moradores utilizam fossas. Porém, há uma perspectiva de futuro melhor, é o que afirma frei Gilvander Moreira, padre carmelita e assessor da Comissão Pastoral da Terra. “Essas ocupações tem um papel importante, além de livrar as pessoas da cruz que é o aluguel. Elas aumentam a autoestima daqueles que, muitas vezes, chegam aqui doentes por não enxergarem um caminho para melhorar de vida”, relata.
Contudo, a situação dos moradores da ocupação continua incerta. Uma parte do terreno onde fica a Ocupação Rosa Leão pertence à Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), que pediu reintegração de posse do terreno. O processo corre na justiça, descumprindo um acordo feio com representantes das ocupações urbanas da cidade. Uma reunião acontecerá até o fim da semana e os moradores esperam que o problema seja resolvido. A Companhia Urbanizadora e de Habitação Belo Horizonte (URBEL) não quis comentar o tema.

Carta anônima espalha o preconceito no bairro Zilah Spósito.

No dia 13 de agosto, começou a circular no bairro Zilah Spósito uma carta anônima acusando as lideranças da Ocupação Rosa Leão pelos problemas de assalto que vem acontecendo na região. “Somos contra uma favela dentro do bairro. O bairro terá que pagar os custos sociais, mais vez como sempre foi com as outras favelas, digo, ocupações dentro do bairro”, afirma texto.
Lideranças da ocupação suspeitam que ela tenha sido elaborada pelos moradores de classe média da região, que temem pela desvalorização de suas propriedades.
O conteúdo da carta é contraditório. Em outro trecho ela afirma o importante papel do bairro na luta por moradia, absorvendo mais de 10.000 famílias nos últimos 20 anos. Ela lembra das quatro grandes ocupações que aconteceram ali: “Estrada Velha, Manilha, Mariquinha, Zilah Spósito”.
Os moradores dessas essas ocupações têm demonstrado apoio à Ocupação Rosa Leão, que contam também com o apoio das Brigadas Populares, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas (MLB) e vários arquitetos (as) da UFMG e da PUC/MINAS, que estão elaborando um plano urbanístico para organizar a comunidade.

Manifestantes ocupam prédio da PBH. Lacerda é obrigado a negociar .

Esperando há anos para serem ouvidos pela Prefeitura, nos dias 29 e 30 de julho, cerca de cem moradores das ocupações urbanas da cidade ocuparam o prédio da PBH. Eles ficaram por horas isolados, sem água e alimentos. Uma manifestante, sem poder ter nos braços a filha de oito meses, que estava do lado de fora do prédio, amamentou a criança pelas grades do portão. O caso repercutiu no país e o prefeito Márcio Lacerda cedeu à pressão e teve que negociar.
Três pontos foram acordados: Foi formada uma comissão para elaborar propostas para cada uma das ocupações de BH. Fazem parte dessa comissão moradores das áreas, integrantes de movimentos sociais, representantes da PBH e órgãos dos direitos humanos da Defensoria Pública e do Ministério Público de Minas Gerais; Os locais ocupados serão decretados como Áreas de Especial Interesse Social, o que facilita a legalização de posse para os novos moradores. No caso de áreas públicas, isso será feito por decreto e, no caso de terrenos particulares, o caminho será a apresentação de projeto de lei à Câmara de Vereadores; Imediata suspensão dos processos de reintegração de posse contra as ocupações em que a PBH é proprietária do terreno, até que a comissão apresente os resultados.

Moradores da Ocupação Rosa Leão e PBH fecham acordo para a preservação de área ambiental.

No início do mês, a PBH solicitou a coordenação da ocupação que algumas famílias sem-teto desocupassem a área ambiental, que fica ao lado do terreno ocupado, ao lado da Av. Atanásio Jardim. O pedido foi aceito e estas famílias foram realocadas em lotes fora da área de preservação ambiental. Na ocasião, foi acertado um esforço conjunto para preservar as áreas de proteção ambiental.
Ademir da Silva Monteiro, 38 anos, é morador antigo da área. Vivendo na região há 31 anos, ele afirma a vegetação estava degradada quando eles entraram no terreno: “Isso aqui nunca foi habitado, era área de pasto grosso, é utilizado por motoqueiros realizarem trilhas no local”, relata.

Grafiteiros fazem arte na ocupação.

Wendell Opdr e Marcos Lago vêm trabalhando na organização das famílias no terreno. Eles são pintores e fazem grafites em paredes do acampamento. A imagem de uma leoa e rosas foi pintada, junto à frase: “Quando morar for um privilégio, ocupar é um direito”. “Pintei a fachada de um salão de beleza e a tinta que sobrou guardei para grafitar aqui no acampamento”, conta Opdr. Os dois esperam pela a construção de um centro cultural no local para começar a realizar oficinas de grafite com jovens e adultos da região.


segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Na TV Record, a Grande Reportagem sobre a Chacina dos 4 fiscais do Ministério do Trabalho em Unaí, MG, dia 28/01/2004.



O coração da perícope do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), texto de frei Gilvander Moreira. 26/08/2013.

O coração da perícope do Bom Samaritano (Lc 10,25-37).
Gilvander Luís Moreira[1]

Para uma interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, analisar os versículos-chave de Lc 10,25-37, que são os versículos 33 a 35. Eis o que segue.
Os versículos 33 a 35 descrevem as atitudes – a práxis - do samaritano. São versículos riquíssimos em detalhes e constituem a coluna vertebral do processo que começa com a compaixão e deságua na misericórdia. Eles são a referência com base na qual se define a identidade de cada um dos personagens de Lc 10,25-37. Vamos, agora, em busca das palavras do próprio texto, a fim de sondar seu significado mais profundo.
O samaritano percorre dez passos interligados e interdependentes (Lc 10,33-35):
1.      Certo samaritano...” anônimo, pois não é revelado o nome dele; herege, segundo a religião judaica; impuro, segundo o povo judeu; pagão, segundo a cultura judaica; representante dos samaritanos, que por quase mil anos foram discriminados pelos judeus que se aliavam aos poderes político, econômico e religioso.
2.      O samaritano, em viagem, se aproxima da pessoa caída e semimorta. Não passa adiante. Não levanta teorias que justificam a exclusão e aliviam a própria consciência. Interrompe seus planos e deixa-se guiar pelo inesperado, pelo inédito, pelo que acontece. O samaritano estava em viagem porque estava trabalhando. Estava ocupado e provavelmente também preocupado com suas responsabilidades. Mas, por ironia da história, as pessoas que encontram mais tempo são as mais ocupadas. Diz a sabedoria dos engajados: “Se precisar de ajuda, procure alguém que está muito ocupado, pois este terá mais tempo”. Quem pouco trabalha não encontra tempo – por falta de opção - para ser solidário. Tempo é questão de preferência. Quem ama verdadeiramente sempre encontra tempo para estar com a pessoa amada. Encontra o seu jeito de multiplicar o tempo e conquista o tempo necessário para estar com o outro. O sacerdote e o levita voltavam do trabalho e teriam, em tese, mais tempo para dedicar ao pobre assaltado, mas foram insensíveis. O samaritano usa seu precioso tempo para ser solidário.
3.      O samaritano “chega junto...”, não fica a distância, na arquibancada da vida; aproxima-se do outro que está em apuros. Padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo da rua, da cidade de São Paulo, certa vez, quando saía da prisão, foi nervosamente interpelado pelo diretor da prisão: “Pode voltar lá dentro, pois os menores infratores recomeçaram outra rebelião lá e já fizeram alguns funcionários como reféns”. Padre Júlio discerniu no calor do conflito e voltou. Ao entrar, pulou no meio dos menores rebelados e gritou: “Silêncio! Sentem todos!” Um menor grandalhão levantou-se e disse para todos: “Vamos obedecer, pois o padre, nosso amigo, está falando”. Padre Júlio, continuando, conclamou os menores: “Vamos rezar um Pai-nosso. Pai nosso, que estais no céu...” Todos rezaram e assim a rebelião foi contida. No dia seguinte, perguntaram aos menores: “Por que vocês obedecem ao padre Júlio e não obedecem aos guardas penitenciários?” Eles responderam em coro: “Padre Júlio é gente fina; é nosso amigo; chega junto quando estamos em apuros; é verdadeiro; gosta de nós; não mente para nós”. No dia seguinte, padre Júlio constatou que alguns menores tinham sido torturados por dizerem a verdade e denunciarem as arbitrariedades cometidas pelos guardas.
4.      O samaritano o excluído semimorto. Não foi um olhar frio, calculista, sobre o sofrimento do outro, mas um olhar com base no outro que sofre. Um olhar de benevolência e ternura. Deixa que a dor do outro entre através dos próprios olhos. Certamente foi um olhar penetrante. Passa a ver o mundo conforme a dor do outro. E deixa se guiar pela visão que vê o outro sofrendo. Diz a sabedoria popular: aquilo que os olhos não veem o coração não sente. Um provérbio indiano expressa semelhante compreensão ao dizer que os olhos veem mil vezes mais do que os ouvidos escutam. “Não basta se aproximar apenas para fazer uma visita”, alerta tio Maurício, bom samaritano do povo da rua, em Belo Horizonte, autor do livro O Beijo de Deus – o evangelho da Rua segundo tio Maurício.
5.      O samaritano move-se de compaixão em face da dor do excluído. A dor do outro entra pelos olhos e invade todo o corpo. Penetra nas entranhas, no coração, revolvendo-os. Revira o corpo por dentro. Quem está comovido se entrega ao outro, não o agride. Sentir compaixão é associar-se à dor do outro partilhando-a e, desse modo, diminuindo-a. A dor sentida pela pessoa assaltada foi suavizada pelo “odor” da companhia do samaritano. Segundo Dalai Lama, compaixão é admitir que a vida do outro é mais importante do que a minha própria vida; é orientar a vida segundo o outro que sofre. O outro se torna um absoluto na minha vida. Quem decidirá se o meu trabalho vai continuar é a situação do outro.
6.      O samaritano se aproxima ainda mais da pessoa sofrida, entrega-se gradativamente ao outro. É na proximidade que se dá o encontro face a face, o encontro eu–tu. Foi assim que aconteceu com Moisés na sarça ardente (Ex 3,1-6). O Jó da Bíblia, pai da impaciência e da rebeldia, depois de passar por um processo dolorido de revisão da sua experiência de Deus, chega à seguinte conclusão:  “Antes eu Te conhecia somente por ouvir dizer, mas agora meus olhos Te veem” (Jó 42,5). Quer dizer, Jó encontra-se face a face com um Deus solidário e libertador. Mas o encontro face-a-face com Deus se dá no encontro face-a-face com o outro, principalmente com o outro que está excluído, semimorto. Pelo rosto reconhecemos com muito mais facilidade uma pessoa que já vimos alguma vez. Mas se nos apresentar um corpo sem rosto será muito mais difícil o reconhecimento. Uma religiosa, de vida consagrada, desejava viver a contemplação no meio do povo excluído da periferia de Vitória da Conquista, BA. Ela decidiu rezar com o povo aflito da sua vizinhança. Um dia, enquanto visitava as famílias nos seus casebres, percebendo que muitas mães davam água com sal para tentar consolar os filhos que choravam pedindo alimento, a religiosa perguntou para uma mãe: “Por que você vendeu todas as camas, cadeiras e os móveis da casa?” A mãe respondeu: “Irmã, a senhora nunca vai conseguir entender o que significa uma mãe ver o filho chorar e gritar com fome e não ter alimento para dar para o filho. Vendi todos os móveis, um a um, para comprar pão para meus sete filhos. Frio até que a gente aguenta, mas passar fome e ver os filhos pedirem alimento é ser cortada por dentro; mata a gente aos poucos. Nós, mães, não somos de ferro. Somos de carne e osso e amamos os nossos filhos”.
7.      O samaritano cuida do outro no imediato e no mediato. Fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. A compaixão move o coração e aciona as mãos para a prática da misericórdia, da solidariedade efetiva. O samaritano vive a espiritualidade do cuidado com o outro e consigo mesmo. Falam alto o modo como ele ajuda e o que ele usa para cuidar do outro. Revelam a experiência e a competência de quem já está familiarizado com o exercício da solidariedade. E o que ele usa para aliviar a dor do outro são frutos da mãe-terra e do seu esforço humano (suor, fadiga, tempo). Com produtos naturais, o samaritano recupera a vida do outro: óleo, para curar feridas, e vinho, que além de curar, dá alegria e ajuda a retomar a vida.
8.      O samaritano “colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o a uma pensão, onde cuidou dele...” Fez-se solidário, prestou os primeiros socorros e encaminhou o semimorto para o restabelecimento completo. O samaritano não se contentou com o mínimo de assistência oferecida a alguém em perigo, mas deu seu tempo, seu dinheiro e o seu ser, sem calcular. A oferta do dinheiro não é substitutiva, mas um complemento da sua ação pessoal. Ele amou “com força”, isto é, com os seus próprios bens econômicos. Ele mostrou que amar é agir com o coração, é ter “coragem”. Para o samaritano, o grito por solidariedade é urgente. Seria tarde demais e chegaria atrasado se ele tivesse dito para o excluído semimorto: “Daqui a pouco eu te ajudo”; ou “espera um pouco”; ou “quando eu voltar, eu te ajudo”; ou “depois que eu me aposentar eu te ajudo”; ou “quando eu ganhar na loteria eu te ajudo” ou, ou.... Mas o samaritano cedeu o seu próprio jumento para carregar a vítima, desinstalando-se. Isso faz-nos recordar a alegria com que o povo pobre acolhe uma visita, oferece a própria cama para o hóspede e vai dormir no chão. O que normalmente não acontece na casa de pessoas ricas. Com frequência, observa-se hoje uma placa de advertência com a seguinte inscrição: “Cuidado, cão bravo!”; “Cuidado, cerca elétrica!”.
9.      O samaritano pagou dois denários.[2] Conforme Mt 20,2, um denário era o suficiente para pagar um dia de serviço. Mas “um denário por um dia de serviço” era o suficiente para alimentar a esposa e os filhos, comprar roupas, manter as necessidades do lar, pagar impostos, taxas do templo etc? Concordando com o biblista Fitzmyer, dizemos que “a descrição do samaritano é esplêndida; emprega todas suas posses materiais - azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro - para ajudar um pobre infortunado que se encontra pelo caminho”.[3] “Nenhum escritor do Segundo Testamento - salvo, talvez, o autor da carta de Tiago, e este somente de maneira análoga - põe maior ênfase na moderação com a qual o discípulo deve usar suas próprias riquezas materiais.”[4] O samaritano cumpriu o que estava prescrito no shemáh: Dt 6,4-5, que diz “Ouça, Israel... ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e  com toda a sua força.” “Amar com toda sua força” diz respeito à dimensão econômica da vida, a partilha dos bens econômicos. O samaritano deixa o semimorto protegido e encaminhado. Vai embora, mas deixa marcas de bondade e sai positivamente marcado para o resto da vida.
10.  O samaritano não deixou nome nem endereço. Soube a hora exata de entrar e de sair da vida do outro. Foi embora. Agindo assim, impossibilitou que se criasse vínculo de dependência entre ele e o socorrido. Ele foi solidário de modo gratuito e libertador.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 26 de agosto de 2013.
Facebook: Gilvander Moreira




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
Obs.: Esse texto é a “6ª parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander Luís Moreira, publicado no livro  “RECRIAR O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.
[2]    “A moeda denário era parte do sistema de cunhagem do Império Romano. “ Cf. D. E. OAKMAN, “The Buying Power of two denarii. A Comment on Luke 10:35” Forum 3 (1987) 35.
[3]    Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 3. p. 287.
[4]    Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 1, p. 416.